De autocarro a caminho de Santiago de Compostela vieram-me muitas saudades de fazer o caminho a pé.
Fiz a parte galega do caminho português em 2017, partindo sozinha de Valença do Minho, quando fui pela primeira vez ao Compostela Ilustrada, um encontro internacional de cadernos de viagem então na sua segunda edição.
Ao final da etapa que vai de Mós a Redondela, chegada ao albergue, saí para jantar. Dorothea, uma alemã com quem combinei ir após nos refrescarmos da caminhada, deu voz à nossa intenção de abrir o grupo a quem quisesse jantar connosco, convidando os peregrinos. Juntaram-se a nós uma japonesa e um outro português. E foi esse o momento do dia em que tive oportunidade de desenhar, desenhando-os enquanto conversavam e um pouco do ambiente do pequeno restaurante.
A meio do desenho pedi à Ju Won, também ela artista, que me retratasse no mesmo desenho. Parei para que me desenhasse e isso fez com que ficasse com uma expressão ausente, como se estivesse a sonhar e tudo o resto fosse o meu sonho.
O seu contributo tornou este desenho muito especial para mim, e exigiu também que transformasse um pouco a cor do desenho para acompanhar as cores intensas com que me pintou.
Lembro-me também que durante o jantar o tempo pareceu estar suspenso durante um longo momento, o que contribuiu para o ambiente do desenho.
Ainda voltei a encontrar André, o português, no início de uma outra etapa. Eu acordara de madrugada e estava a ler na sala de refeições e ele foi tomar o pequeno-almoço para partir bem cedo.
Só aí, na calma da madrugada, conheci melhor a sua história e compreendi porque caminhava mais depressa do que todos nós. Sendo militar em situações de emergência humanitária, tinha de estar preparado para chegar longe e depressa onde quer que tivesse de actuar.
Quando o encontrei pela primeira vez ouvira comentários sobre ele andar tão depressa, havendo dias em que fizera quarenta e tal quilómetros, o que corresponde a pelo menos duas etapas, e mesmo depois da conversa animada do jantar em que tivemos oportunidade de trocar impressões ainda ficara uma noção estranha sobre os seus motivos, pois só falou do entusiasmo em caminhar e de pormenores mais técnicos da caminhada.
Apenas essa conversa calma, em que lhe pude fazer as perguntas certas e ouvi-lo com o coração, me trouxe uma dimensão mais real e profunda desse homem.
E só aí compreendi também porque sendo ele alguém que falava com força e convicção, o desenhei tão suave e pacífico. Ouvindo no silêncio da madrugada curtos relatos do seu trabalho em tempos de paz, em serviço nos Açores, transportando pessoas das ilhas mais remotas, como ao transportar uma grávida de helicóptero em situação de emergência, até à exigente condição de estar em alerta para a qualquer momento poder entrar num perigoso cenário de guerra para proteger e resgatar pessoas, o retrato dele no meu desenho fez então para mim muito mais sentido.
Muitas vidas dependerão da sua preparação, que não é só física, e apesar dessa, a par da psicológica, ser uma componente fundamental do seu trabalho, também o usufruir de um caminho de tradição espiritual é, ou se pode tornar, um suporte, para ele e tantos que dali partem ao reencontro das suas missões e caminhos de vida. Faço votos que ao André lhe seja também uma protecção.
O caminho é feito de muitas historias e ritmos diferentes e de raros e belos momentos de comunhão, como estes.